quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Jura de menina pobre" (O Cruzeiro, 29/08/1959)


Matéria publicada originalmente em "O Cruzeiro" no dia 29 de agosto de 1959 e reproduzida no site "Memória Viva" (http://www.memoriaviva.com.br/)


Tomei a liberdade de corrigir alguns erros de digitação. 
A grafia da época foi mantida, para que o documento não tivesse alterações.



"Jura de menina pobre .

Por SOPHIA LOREN (exclusivo para "O CRUZEIRO")


Sophia Loren hoje nos conta sua história. É a história de uma menina triste e pobre. Aos cinco anos, descobriu que fôra registrada como “filha natural”. Môça feita, pediu chocolate a muito soldado nas ruas de Nápoles. Até que conheceu Carlo Ponti. Ponti tinha o dôbro de sua idade e queria Sophia ganhasse um concurso de beleza. Não o conseguiu, mas fêz dela uma “estrêla”. Menina ainda, Sophia jurou que seria tão rica que o mundo inteiro a admiraria. Atualmente, fazendo seu sétimo filme nos Estados Unidos (aparece loura pela primeira vez), Sophia tem a certeza de que o mundo a admira.

HOLLYWOOD, agôsto de 1959 (Via Varig). - Após cansativa viagem de ônibus, Mammina e eu finalmente desembarcamos em Roma. Nunca havíamos estado tão longe de Nápoles! Ver a Cidade Eterna foi para mim uma emoção inesquecível, não por causa das ruínas históricas que tanto atraíam os turistas, mas porque era ali onde se faziam os filmes italianos.

Perambulamos pela cidade um dia inteiro, procurando um lugar para morar. Com o pouco dinheiro que tínhamos, precisávamos descobrir o mais barato. Optamos por um quarto escuro e pequeno, numa velha pensão na zona pobre da cidade. Daquela maneira, o dinheiro seria suficiente para uma semana. Mas Mammina era otimista:
- Antes disso, arranjaremos emprêgo.

Ela tinha razão. Dois dias depois, conseguimos trabalho como extras no filme “Quo Vadis”, que a Metro estava realizando em “Cinecittá”. Pusemos nossos costumes e maquilagem de acôrdo com as instruções dos americanos e misturamo-nos com a multidão de outros extras já presentes. Senti-me tão importante! Parecia que era a “êstrêla” do filme e não uma cabeça ente 5.000!

Trabalhamos três dias e, logo em seguida, aconteceu algo desagradável. O assistente de produção estava chamando os nomes dos extras que deveria voltar no dia seguinte e, quando ouvi “Scicolone”, dei um passo para a frente. Mas outra mulher havia se adiantado, alegando: “Eu sou a Scicolone!” Através de seu olhar ferino e irônico, percebi que aquela era a êsposa de meu pai. Sai correndo do estúdio, com o rosto pegando fogo de vergonha e humilhação.

Mais tarde, na pensão, recebi um telefonema. Era meu pai, que nos havia localizado através do enderêço dado no estúdio.

- Sophia - disse êle carinhosamente -, o que você está fazendo em Roma? Êste não é um bom lugar para uma garôta recém-saída da escola! Por que não volta para Pozuolli e esquece o cinema?
Fiquei furiosa com o seu conselho. Quem era êle para tentar orientar-me na vida? Havia dado duas filhas a minha mãe, mas depois casara-se com outra mulher, E agora queria destruir meu sonho antes mesmo que eu tivesse a chance de tentar realizá-lo.
- Estou aqui por minha livre e espontânea vontade. Sua autoridade não é suficiente para me fazer mudar de planos.

Desliguei o telefone, sem contar à minha mãe o incidente. Havíamos ganho 33 dólares em “Quo Vadis”, que duraram um mês (vivendo só de “minestrone”), enquanto tentávamos outros empregos de extras. Mas não tivemos a sorte do comêço e o dinheiro já estava quase no fim, quando resolvi procurar outro tipo de trabalho, conseguindo-o. Era como modêlo fotográfico das revistas “Fumetti”, que publicam histórias românticas em quadrinhos. O salário era pequeno, mas suficiente para vivermos.


Mantive essa profissão durante dois anos e meio até que algo aconteceu que mudou completamente o rumo de minha existência. Uma noite, numa das minhas raras saídas, fui a boite com um colega da revista, a fim de assistir ao concurso de beleza que estava tendo lugar ali. A determinada altura, um garçom trouxe-me um cartão de visita de um dos juízes, dizendo que êle queria falar comigo. O cartão trazia o nome de Carlo Ponti. Eu sabia que Mr. Ponti era um dos mais importantes produtores de filmes da Itália. Encaminhei-me para sua mesa.

- Por que a signorina não está no concurso? - perguntou-me.
- Ora, porque não sou bonita como as outras garôtas! - respondi com sinceridade.
- Bobagem - exclamou Ponti. - Vou inscrevê-la.


Não ganhei o concurso, mas, após o mesmo, Mr. Ponti convidou-me para fazer um teste cinematográfico. Quase desmaiei ante a idéia. A princípio, pensei que tudo não passasse da habitual conversa de um velho conquistador, pois Ponti tinha o dôbro da minha idade. Mas o tempo provou que seu interêsse era genuíno e que de fato via possibilidade na minha pessoa. Passei a admirá-lo profundamente e uma grande amizade nasceu entre nós - amizade que os anos transformariam em amor.

Fui bem sucedida no teste, mas como ainda precisasse de experiência, Carlo arranjou para que eu frequentasse uma escola de arte dramática, a fim de aprender os rudimentos da representação e da boa dição. Quando me julgou suficientemente preparada, lançou-me no filme “África sob o mar”, dando-me também um sobrenome: Loren. Mas êle não queria tornar-me "estrêla" da noite para o dia.

- Você precisa impor-se perante o público com seu próprio trabalho - explicou-me.

E após a escrava “Aída” - meu segundo filme - participei de outras 27 produções durante o período de três anos. Meu sucesso foi gradativo e tive tempo de acostumar-me com êle. Do quarto escuro daquela pensão da zona pobre, passei para um belo apartamento no melhor bairro de Roma e, logo depois, para uma enorme casa, que aluguei para tôda a família: Mammina, minha irmã Maria, tia Dora e tio Mário. Minha maior satisfação era sentir que todos poderiam depender de mim. Eu - que não tinha o que vestir em Pozzuoli e que mendigava barras de chocolate dos soldados americanos que desembarcaram em Nápoles - agora podia encomendar vestidos nos melhores costureiros de Paris.


O único senão nessa época tão agradável era “o outro lado da família”. Por motivos que desconheço - uma vez que meu pai e minha mãe se separaram pouco antes do casamento dêle - sua espôsa passou a perseguir-nos com ameaças de escândalo, chegando a ponto de levar-nos ao Tribunal, a fim de evitar que Maria e eu usássemos o nome Scicolone. Ela perdeu a causa e, também, o marido, pois, logo em seguida, meu pai pediu o desquite. Na sua solidão, êle passou a procurar mais as filhas e foi então que aprendi a compreendê-lo melhor. Hoje, somos bons amigos e acho que êle e Mammina poderiam ser felizes juntos, mas ela já me disse que “agora é tarde demais”.


Por outro lado, minha carreira nada deixava a desejar. Fiz três filmes americanos - “The pride and the passion”, na Espanha com Cary Grant e Frank Sinatra; “Boy on a dolphin”. na Grécia, com Allan Ladd e Clifton Webb, e “Legend of the lost”, com John Wayne, na África. Mas quando a Paramount mandou-me oferecer um contrato para vir a Hollywood, fiquei assustada. A maioria das minhas compatriotas atrizes haviam participado de filmes americanos feitos no estrangeiro, mas, quando fixavam residência em Hollywood e tentavam competir de perto com as “estrêlas” daqui, acabavam fracassando. Isa Miranda, Alida Valli e Rossana Podestà eram bons exemplos. Ao mesmo tempo, algo me impelia a aceitar a proposta, pois sabia que só em Hollywood uma atriz alcança a fama internacional. Carlo incentivou-me bastante e embarquei para os Estados Unidos tão disposta a lutar por um ideal como nos meus primeiros tempos de Roma, como extra de “Quo Vadis”.


A recepção que me haviam preparado foi inesquecível. A Fox, a Paramount e o produtor Stanley Kramer ofereceram-me três festas diferentes, às quais compareceram todos os grandes nomes de Hollywood. Esqueci todo o inglês que havia aprendido quando Bárbara Stanwick - meu ídolo desde a infância - foi abraçar-me e dar-me boas-vindas. Eu, alvo de tantas homenagens dos mesmos artistas famosos, cujos retratos havia colado no meu álbum de fã em Nápoles.
Após a fase de festas - que parecia não acabar nunca - comecei um trabalho intenso, preparando-me para vencer em Hollywood. Aperfeiçoei o meu inglês e, sem um período de férias sequer, filmei “Desejo”, com Tony Perkins; “The Key”, com William Holden; “Houseboat”, novamente com Cary Grant; “The Black Orchid”, com Anthony Quinn, e “That kind of woman”, com Tab Hunter. No momento, termino meu primeiro “western” (sempre sonhei fazer um filme de cowboy!), que se intitula “Heller with a gun” e no qual interpreto uma atriz de um teatrinho de variedades, que viaja pelo Oeste americano e se envolve com mocinhos e bandidos. Logo partirei para Viena, a fim de filmar “Breath of scandal” com John Gavin e Maurice Chevallier. Depois disso, “Bay of Naples”, com Clark Gable - a ser todo realizado na minha querida Nápoles.

Até agora, tudo indica que não fracassei em Hollywood como temia, pois já me sinto parte da cidade e da colônia cimetográfica. Financeiramente, encontro-me em pé de igualdade com as grandes “estrêlas” americanas, recebendo a média de 300.000 dólares por filme, ou seja dois milhões anuais. Orgulho-me de dizer que Mammina e o resto da nossa família podem depender de mim para o resto da vida. Até meu pai - que ganha bem como engenheiro - sabe que o ajudarei, se algum dia necessitar.


Contudo, o verdadeiro responsável por essa situação privilegiada que hoje ocupo é o homem que acreditou nas minhas possibilidades e teve a coragem de arriscar dinheiro em uma desconhecida: Carlo Ponti. Não me casei com êle por gratidão, nem lhe destruí o lar, como fui acusada. Quando nos conhecemos, Carlo já se havia separado de sua espôsa, e, posteriormente, ambos tentaram várias reconciliações para benefício dos filhos. Mas o tempo provou que não havia mesmo a menor compatibilidade entre o casal. Nosso amor não foi impetuoso, nem precipitado. Nasceu de uma grande amizade, da compreensão mútua, da confiança pessoal que êle sempre me inspirou. Nunca tolerei os rapazes da minha idade. A guerra e a luta pela vida deram-me um espírito maduro. Se depender de mim, nosso casamento jamais terminará em divórcio, como os das minhas colegas de Hollywood.


Essa é a verdade a meu respeito."



Autoria

O blog "Sophia... Ieri, Oggi, Domani" (sophiaierioggidomani.blogspot.com) é de autoria de Carmem Toledo. Está proibida a reprodução total ou parcial do conteúdo aqui publicado, inclusive dos disponibilizados através de links aqui presentes. A mesma observação se estende a todos os blogs e páginas da autora ("Culturofagia", "Voz Neurodiversa", "O Caminhante Solitário") e toda e qualquer criação, seja em forma de texto ou ilustração, por ela assinada.
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